Escritos de Ada

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

 http://vi.sualize.us/view/1102c4945288ef77e5996537f13556c6/

O clamor cor de prata
dos peixes
nas redes

homens
feitos de areia
maresia 
e sal.

domingo, 26 de setembro de 2010

Nas entrelinhas

A lírica moderna é desafiadora. Como ficar tranqüilo diante dos despropósitos de textos que não revelam a chave da compreensão?

Acontece que a poesia não precisa ser compreendida. Ela deve, sim, provocar os sentidos, embora essa provocação desafie o bom senso. Mas, quem disse que a poesia necessita de bom senso? Seja através de sintaxes tortas ou de desbundes gramaticais, a produção moderna tem o mérito de buscar o deboche, o inusitado, o mal comportado que provoca reações bem dessemelhantes daquelas experimentadas pelos leitores das obras Românticas.  

Na visão moderna, para produzir arte, é necessário pesquisar e estudar, porque obra alguma é fruto total do acaso. A escrita é um ofício que exige maestria técnica. As palavras são lapidadas de maneira a representar o que se quer dizer. Essa exatidão, buscada desde a época dos sofistas – quando Protágoras a defendia sob o nome de orthoépia – é a habilidade de “recriar o mundo”, o que não implica, necessariamente, em se adequar à realidade para tornar a leitura fácil. Palavras claras não implicam em clareza de sentido. Tomem-se como exemplo os versos de Ana Cristina César:
“Precisaria trabalhar – afundar – / – como você – saudades loucas / – nesta arte – ininterrupta – / de pintar – / A poesia não – telegráfica – ocasional – / me deixa sola – solta – / à mercê do impossível – / – do real”

O poema “Vacilo da Vocação” é uma prova de que técnica e a concisão caminham juntas. As palavras, isoladas ou agrupadas em períodos muito pequenos, são separadas por travessões que indicam os recortes no pensamento do eu fragmentado. Esses retalhos constroem o sentido do poema, ao mesmo tempo conciso, fragmentado e completo. As palavras parecem metodicamente pensadas e montadas. Há uma brevidade não relacionada unicamente ao tamanho do poema, mas também à capacidade de reunir o máximo de sentidos sem palavreados desnecessários.

A presença dessas características tão ligadas à técnica em “Vacilo da Vocação” não significa desprezo à inspiração. O eu lírico que se esforça “nesta arte – ininterrupta – de pintar” é o mesmo que fica “à mercê do impossível – do real”. Ele trabalha para compor o poema, mas, sendo um artista, é sensível à idéia inesperada. Ele não se fecha ao “impossível” e ao “real” como fornecedores de material para versos. Afinal, essa não é a inspiração dos românticos, e sim a que vem do real, pois a poesia não é onírica, distante: ela está no mundo, ao nosso alcance.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Onde mora o encantamento

Os escritores modernistas inauguraram uma era de liberdade ao abolirem certas obrigações parnasianas. Imposições como catar rimas preciosas e organizar minuciosamente as sílabas de cada verso criaram muitos poemas tecnicamente perfeitos, mas vazios.

Por outro lado, há quem abuse da liberdade, escreva qualquer coisa de qualquer jeito e diga que é poeta. O fato é que, embora não precise de um molde, a poesia tem parâmetros de qualidade. Carlos Drummond de Andrade, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira e outros foram brilhantes com seus versos livres. Eles cumpriram o que T.S. Eliot dizia ser a tarefa do poeta: preservar a língua e aperfeiçoá-la, ao utilizá-la para exprimir os próprios sentimentos e os das outras pessoas, de tal forma que os leitores, conscientes do que sentem, aprendem algo sobre si.

Creio que seja esta a principal característica da boa poesia. Venha em forma de soneto ou como uma união de versos sem rima e sem métrica, o poema deve fascinar o leitor. Os primeiros poetas modernos conseguiam este efeito através das dissonâncias. No livro Estrutura da lírica moderna, Hugo Friedrich aponta a “tensão dissonante” como característica essencial das artes modernas. A dissonância é explicada por Friedrich como um misto de fascinação e incompreensibilidade, resultado da obscuridade dos textos. Conclui-se, daí, que os poetas modernos não pretendiam ser claros ou mostrar a realidade de maneira objetiva, mas chegar ao âmago do leitor. O francês Charles Baudelaire já dizia que “existe certa glória em não ser compreendido”. Deixemos, portanto, a comunicação clara e objetiva aos textos jornalísticos – embora nem todos o façam.

Não parece fácil, e não é. Nem todos estão dispostos a acostumar os olhos à novidade da poesia. Talvez seja este um dos maiores dilemas enfrentados pelos poetas, desde o desabrochar da lírica moderna. Não é difícil encontrar um escritor que já tenha ouvido algo como: “você é obscuro, parece escrever só para você”. O fato é que um meio de criação poderoso como a poesia não precisa ser utilizado para transcrever a realidade. Um poema pode ser uma porta para outro mundo, no qual as sensações dão o tom das experiências e revelam o que não surge à primeira vista. Nesse sentido, a poesia é revelação não do que vemos todos os dias, mas do que se esconde por trás de nossa consciência. Para tanto, é necessário entregar-se ao que o escritor mexicano Octavio Paz chamou de “trato desnudo do poema”: o leitor percebe que o fascínio não está em fatores externos, e sim na própria poesia, no encantamento produzido por cada imagem ou som evocado pelas palavras. Somente assim, a experiência poética se concretiza.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Sinatra sem voz

Todo jornalista, com ou sem formação acadêmica, já mexeu com o tal lead. Essa palavra inglesa define o primeiro parágrafo da reportagem, que, reza a cartilha, deve responder as perguntas: O quê? Onde? Quando? Por quê? Como?

Um adepto fervoroso do lead dificilmente iniciaria um texto com: “Frank Sinatra, segurando um copo de bourbon numa mão e um cigarro na outra, estava em um canto escuro do balcão entre duas loiras atraentes, mas já um tanto passadas, que esperavam ouvir alguma palavra dele”. Pois é assim que começa um dos perfis mais aclamados da história do jornalismo.

“Frank Sinatra está resfriado” foi publicado pelo americano Gay Talese em 1965, na revista Esquire, e incorporado mais tarde ao livro Fame and obscurity. Sua mais recente versão no Brasil foi publicada em 2004, com o título Fama e anonimato, pela Companhia das Letras.

Talese foi repórter diário do The New York Times nos anos 1950. Pediu demissão em 1965: queria mais tempo para apurar suas matérias. Passou a trabalhar em revistas e em seus próprios livros. Tornou-se um dos pais do new journalism, modalidade que funde elementos do jornalismo com outros tipicamente fictícios, como a descrição detalhada das cenas e o ponto de vista do personagem.

Essas características estão no perfil de Sinatra, fruto de cinco semanas de observação e nenhuma entrevista com o próprio. O cantor recusou-se a falar com Talese, que decidiu seguir seu perfilado em Los Angeles e conversar com quem estava à sua volta. O resultado são mais de cinquenta páginas magistrais.
 
Hoje, aos 77 anos, Talese detém um amplo legado, difícil de resumir em poucas linhas. Uma de suas lições é que não se deve ser escravo do lead, sob pena de emburrecer à força da facilidade demasiada. Outra é que é possível escrever um perfil sem entrevistar o perfilado, desde que haja uma acurada observação. Não poder perseguir um assunto durante semanas não é empecilho para deixar de cercar bem os fatos. Pena que a corrida cada vez maior pelo “furo” resulte em textos rasteiros e em jornalistas reféns da internet e de comunicados oficiais.

Talvez, o maior ensinamento seja o de que precisamos colocar gente nos jornais. O jornalismo de Talese tinha uma cara muito humana, fosse empoada como a das celebridades ou suada como a dos trabalhadores braçais. Para isso, é necessário ir às ruas, falar com as pessoas, cercar-se delas. Isso exercita o instinto. E jornalista sem instinto, como diria Talese, é “Picasso sem tinta. Ferrari sem combustível – só que pior”. É como Sinatra sem voz.