Escritos de Ada

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O cego e o violão***

O som da bengala batendo de leve no portão de ferro era o primeiro anúncio da chegada de João Cego. Depois, a voz grave: “dona Vanda?” E vovó pedia a ele que esperasse, enquanto largava o pano de prato, a vassoura ou a Bíblia para ouvir as canções de João.

Eu sentia um pouco de medo de João Cego. Era um homem alto, magro, queimado do sol, cabelo liso e meio oleoso caindo desarrumado sobre a testa. Andava curvado, tateando o chão com uma bengala, e carregava nas costas uma sacola e um violão. Uma mancha azulada não deixava ver a cor dos seus olhos. Eu me perguntava como um homem que parecia ter nuvens nos olhos conseguia superar os batentes das calçadas íngremes e atravessar a rua sem ser atropelado.

Depois fiquei imaginando se João Cego poderia ser um impostor. Afinal, como ele conseguia reconhecer as casas? Quando eu insistia nessas questões, vovó, do alto de sua fé, respondia que Deus tinha dado um dom a João. E fui me dando conta de que há coisas que não se explicam. Coisas como um cego que toca violão.    

O fato é que, de todos os personagens pitorescos da minha infância em Areia Branca, João Cego é o único que posso visualizar nitidamente. Mal recordo as feições da mulher que punha vasilhas de leite na rua para alimentar os gatos; o homem do cavaco chinês, que tocava triângulo para anunciar sua passagem; o rapaz que gritava “picolééé” e a gente ouvia três ruas adiante. Mas a figura de João Cego, talvez por sua atipicidade, ficou gravada na minha memória.  

Não, João Cego não era um grande instrumentista, tampouco um cantor refinado. Enquanto eu o observava discretamente por trás das persianas da porta da sala, notava sua maneira desajeitada de empunhar o violão. Nunca o vi fazendo um grande solo. Também não recordo as letras das canções. Lembro que João Cego cantava alto e grosso, num tom lamurioso que me faz imaginar que, talvez, suas músicas versassem sobre saudade, tristeza, corações partidos. Ou sobre a crueza das longas caminhadas sob o sol, os pés rachados e mal acomodados em um par de chinelos velhos. Algo que, fosse a estranheza ou, quem sabe, a sinceridade, me impressionava de alguma maneira.

Não sei o que foi feito de João Cego. Não lembro de tê-lo visto nas minhas últimas e curtíssimas temporadas de férias. Terá encontrado um lugar para descansar? Terá sucumbido ao cansaço de cantar e tocar de porta em porta por uns trocados? Não sei. Como também não imagino o que me fez lembrar João Cego e o seu violão. Quem sabe, algum rastro da infância e das coisas que só um coração de criança consegue sentir.


***Sim, estou reinaugurando o cantinho com um texto antigo. Perdoem-me, mas não pude segurar a vontade de tirar a poeira daqui, e postar algo antigo foi a única maneira de fazer isso neste momento. Em breve, textos novos.