Escritos de Ada

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

O princípio

                                                                                                   Para F.


No princípio não houve o verbo.

Houve tons de vermelho
houve álcool
houve a sensação de nada ao nosso redor apesar de todas aquelas pessoas
e houve depois uma mulher dizendo
que o amor é muito bonito mas não podíamos ficar sozinhos ali.

Do vermelho se fez o azul:
era a primeira madrugada
minha planície se tornou também sua
e as paredes do quarto azulavam
e escondiam tudo que não se pode dizer nem fazer às claras
enquanto o mundo
– apenas o mundo –
dormia.

A primeira manhã trouxe o sol mas ele parecia estar pela metade
e quanto anoiteceu não houve lua
você disse que havia luz
e até mesmo um brilho no mar
mas juro que eu vi a sombra escondendo inclusive
aquele fenômeno de nome engraçado
(luciferase)

Então já havia o verbo
mas a noite perdurou de modo que
por alguns dias não houve azul nem vermelho
ainda não havia lua
e a metade do sol tinha ido embora

então o verbo nos levou ao sétimo dia
e buscamos mais cores
e buscamos mais álcool
e havia tanta gente que em um momento já não havia ninguém
e tornamos ao princípio:

azul, vermelho, sons, luzes
tudo que havia se fundiu
e afugentou a sombra

e sol e lua se moveram tranquilos sobre a planície
e a luciferase continuou a brilhar
sobre a face das águas.

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

A grandeza dos trastes


                                                     (Publicado originalmente no Novo Jornal, em janeiro de 2010)

           Carlos Drummond de Andrade disse, certa vez, que o maior poeta brasileiro era Manoel de Barros. O próprio, mais tarde, discordou do mineiro de Itabira e falou que o melhor era João Cabral de Melo Neto, seu contemporâneo da Geração de 45. O fato é que há quem torça o nariz para o poeta matogrossense, dada sua preferência por trastes e restos. “Sou mais a palavra ao ponto de entulho”, confessou em um de seus poemas.
Além disso, Manoel ainda é visto, folcloricamente, como o poeta pantaneiro. É verdade que seu universo não é urbano. Predominam, em sua poesia, o mato embrenhado, os rios, as plantas e os animais silvestres. No entanto, a presença do Pantanal é só um dos detalhes na produção do escritor nascido no Beco da Marinha, beira do Rio Cuiabá, em 1916. Seu trunfo é ser um artífice do verbo em sua origem espúria, como revelam os versos: “Nenhuma voz adquire pureza se não comer na espurcícia. Quem come, pois, do podre, se alimpa. Isso diz o Livro.”
A poesia de Barros é a de quem está descobrindo o mundo à maneira ingênua de  uma criança ou de um louco. “Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina. / No osso da fala dos loucos tem lírios.”, escreve. Manoel assemelha-se a um menino que, tão logo é solto em meio a escombros, retira deles brinquedos e exibe-os com a bonita ingenuidade de quem enxerga utilidade em algo aparentemente imprestável.
Dessa poesia infante surgem imagens da essência de coisas comezinhas e mesmo abstratas. O poeta “fotografa” o silêncio, o “azul-perdão no olho do cego”, o “perfume de jasmim no beiral de um sobrado”, e personagens como o bêbado que caminha solitário em uma rua silenciosa, o monge “descabelado” por uma palavra renascida da ruína, os artistas que vagam pelo mundo criando obras a partir de restos e pregando a inutilidade das coisas. São esses os “sujeitos distraídos” de que fala o poeta mexicano Octavio Paz: criaturas deslocadas do centro da cena social, ligadas à poesia porque dão sentido a ela ao buscar o que poucos enxergam.
É nessa maneira peculiar de fazer – e revelar – poesia que, acredito, está o maior mérito de Manoel de Barros, mestre em transformar o pequeno em magnânimo.  São escritores como ele que mostram como, em se tratando de poesia, a inutilidade pode ser uma virtude.

quinta-feira, 17 de outubro de 2019