Escritos de Ada

terça-feira, 29 de agosto de 2017

O anjo cinza

O anjo cinza que canta blues
instalou-se em minha casa
julgando curtas as noites
pôs blecautes nas janelas.

Uma semana passei
prostrada aos pés do anjo
ouvindo-lhe as dissonâncias.

Com medo de olhar-lhe o rosto
pedia em silêncio:
"me toma
me leva nos braços
pois para tão curta missão
é já tão longa esta vida..."

O anjo apenas cantava.

As notas encheram o quarto
subiram às prateleiras
cobriram os pontos de luz
penduraram-se no teto.

Quando o anjo foi embora
a réstia de luz que se abriu
mostrou a composição:

uma grande espada cinza
pesada 
qual as notas sopradas da boca do anjo
girava sob o teto e sobre mim
suspensa apenas 
por um fino fio de seda.

Passaram-se sete dias
e a espada ainda está lá.

Só eu a enxergo
e só eu escuto
a voz grave do anjo cinza
que canta blues
à minha janela.

As notas enchem o quarto
e caem das prateleiras
e embotam os pontos de luz
e giram com a espada
– tão tênue a linha 

e sob palavras e a espada
gira a minha cabeça

por um fio. 

sábado, 19 de agosto de 2017

Manual (porque hoje é dia de reelaborar antigos escritos)

Não me capture da concha
se não puder me aconchegar por mais do que uma noite.

Tenha cuidado
ao me tocar a pele
os cabelos
e sobretudo o coração
pois sua intensidade vai ditar
o quanto devo me expor
(e é sempre para além de oitenta
pois há tempos eu deixei de ser oito).

Não me alimente com doçura
se não for regalar minha alma
com todos os cheiros, formas e sabores
que eu puder sentir.

Se não vai transbordar afeto
se não quiser ser todo amor

permita que outros dedos me colham
deixe que outras mãos me cuidem
abra espaço
para que outras ondas me levem.