Escritos de Ada

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Dos autoenganos

Ela não poderia querer morrer
eles disseram

foi acidente

chequem a fechadura
liguem a luz
busquem pegadas invisíveis
procurem gotas de sangue e de saliva

pois ela não poderia querer morrer

a gente conhecia ela
tava cantando na semana passada
assistiu a uma comédia e riu até chorar

hoje ela deixou: 
café pronto
louça enxuta
chão brilhoso
manjericão regado
- a terra ainda tá úmida 

então, não
ela não queria morrer
a gente conhecia ela
disseram
muito certos de si

se a conhecessem
saberiam
ela apenas queria a tranquilidade das pequenas coisas:
o calor no bule
o vazio na pia
o deslizar no assoalho
o cheiro de mato fresco no vasinho

para morrer
- pelo menos morrer -  
em paz.

terça-feira, 11 de agosto de 2020

Desalinho

Quisera arrumar meu corpo
como se ajeita uma casa
mas não posso não consigo

meu corpo está desmoronando
eu não posso arrumá-lo não consigo limpá-lo
erguê-lo dói

são muitos fios e poucas tomadas
plugs em desalinho
não há emenda não há jeito

há poeira vermelha no assoalho
há carne viva nos canais
tento removê-las mas estão agarradas

há cardos teimosos
arame farpado
anuviando a vista da vida
exceto por uma janela

aquela janela sempre aberta
ao futuro atrás de mim.

terça-feira, 4 de agosto de 2020

Natal sem menino

Lá fora
pequenas e quentes esferas no ar
luzes matinais de dezembro:
poeira
mas as crianças fingem que há neve.

Aqui dentro
ponho uma guirlanda de frutos na porta
descarto mais uma planta seca

e encerro-me
para cultivar o ensurdecedor silêncio
do berço vazio.