Escritos de Ada

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

Oração

Que a poesia me salve
não dos pesadelos
nem dos homens que me desamaram
tampouco dos que nunca me amaram
menos ainda dos que não se deixaram ficar por receio
de não regressarem de mim

que me salve
da ausência de fé
e do desespero de ver o índigo acobertar a meia-luz
e revelar fantasmas

que a poesia me salve
de me perder para sempre
nesse espaço-tempo infinito e desconfortável
que me consome de dentro para fora
e quase me drena a voz

que ela
– minha voz –
resista
para que a poesia me salve

de mim.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2017

Súplica

Rogo a quem mantém o caos suspenso sobre nossas cabeças
e aprisionado dentro delas

que me resguarde de enlouquecer com as lembranças
de subtextos
de olhares distantes
de silêncios que poderiam ser cortados com uma faca

que me livre das palpitações
que transmute em cores os tons de cinza que me anuviam a visão

que me devolva

o espaço que você ocupa em mim.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2017

Para ficar em paz


Talvez
eu jamais esqueça o seu nome
(tenho boa memória para nomes
assim como para particularidades anatômicas:
um sinal no peito
um dedinho torto
caninos sem pontas
pequenos calos nas mãos)

mas um dia
haverei de esquecer

o tom da sua voz me dizendo
como a uma criança
que eu tenha cuidado porque este mundo é uma selva
que eu observe com quem andam os homens
para deles me proteger

haverei de esquecer
de como era fácil desarmar você
um beijo na nuca apenas
um abraço com minhas pernas em tua cintura 
e era tudo meu:

os sorrisos
o corpo em festa
os olhos fechados
o ressonar revelando inimaginável intensidade
tanta
como se todo o ar tivesse de ser seu

um dia haverei de largar tudo isso
não naquele relicário
onde guardo os amores que me fizeram melhor

mas num baú
cuja chave perderei a cada troca de fechadura
para que permaneçam ali as lembranças de quem me fez abrir a porta
e ficar ao relento

para ficar  em paz
sabendo de você
talvez

apenas o nome. 


domingo, 12 de fevereiro de 2017

Ponto final

Ele
pleno em seu silêncio e em sua força
os quadris dela alçados por seus braços
nem valsa
nem foxtrot
uma dança só deles
batucada ao modo de jam
sem marcação
sem regência
sem ensaio
vontade apenas

maior do que a vontade
só o esforço
que não houve na dança
mas que agora esmaga a meia-luz do quarto 

o esforço do instante em que ela olha o rosto dele
e ele não sabe que ela o vê

o esforço não é o de encontrar beleza no semblante plácido
– a beleza já estava lá –
contudo
pela primeira vez ela o vê plácido como uma criança que dorme
uma criança que sonha
com brinquedos
com o bichinho de estimação
com o colo morno da avó
não aquela placidez de quem diz não se desequilibrar.

Aquele esforço dela é o de quem se conforma
simplesmente porque precisa

precisa se conformar
com a suspeita de ser a última vez
com o fato de não ser desta vez
com a ideia de ser apenas a da vez.

Sobretudo
precisa aceitar que
ele
deve ser apenas o da vez.

Ele
que já se foi antes mesmo de cruzar a porta mais pesada
porém aberta, escancarada

ele
que poderia ter sido recomeço
é apenas


ponto final.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

Fantasmas

Já colecionei fantasmas.

Houve uma época em que eu pedia que fossem embora
mas eles ficaram
instalaram-se ao lado da escrivaninha
não sei como cabiam todos lá.

Passei a gostar deles
principalmente da senhorinha alva e rendada.

Ela não era de conversar
mas tinha uma luz tão bonita
passeava com tanta elegância ao redor da cama.

Era tão linda
que não precisava de um rosto.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

C.

Ele nem desconfia
mas há tanto barulho dentro dela

tanto
que ela poderia dar uma festa

tocaria todos os instrumentos
sem se importar com as cordas desafinadas
nem com os dedos em carne viva de tanto bater tambores  

mas ele não ouviria

o silêncio que ele faz é tão pesado
que um cortejo desfilaria na sala

e ele não ouviria

permaneceria calado
tão silente quanto ela agora
aleatória
desejando o carnaval

sozinha.

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Quando o amor vem de um jeito e de quem não esperamos


Arte de Amadeu Araújo, meu ex-aluno, sobre poema do livro "Águas".

Sobre a leveza rejeitada

Aquela leveza
das mãos invisíveis que suspendem os pássaros
eu dispenso
eu rejeito.

Enquanto ouço Cazuza cantar "a sorte de um amor tranquilo"
desejo

alguém que me ame com meus rompantes
com as latas de Skol
(de dez pra lá, pelo menos)
com os Marlboros vermelhos casuais
os braços erguidos enquanto toca Johnny Hooker e eu grito
"Volta
que o caminho dessa dor me atravessa".

Quero alguém que ferva como eu
água em ebulição

e que não tema não regressar de mim.