Escritos de Ada

quarta-feira, 30 de março de 2011

A grandeza dos trastes

Publicado no Novo Jornal, edição do dia 29 de janeiro de 2010

Carlos Drummond de Andrade disse, certa vez, que o maior poeta brasileiro era Manoel de Barros. O próprio, mais tarde, discordou do mineiro de Itabira e falou que o melhor era João Cabral de Melo Neto, seu contemporâneo da Geração de 45. O fato é que há quem torça o nariz para o poeta matogrossense, dada sua preferência por trastes e restos. “Sou mais a palavra ao ponto de entulho”, confessou em um de seus poemas.

Além disso, Manoel ainda é visto, folcloricamente, como o poeta pantaneiro. É verdade que seu universo não é urbano. Predominam, em sua poesia, o mato embrenhado, os rios, as plantas e os animais silvestres. No entanto, a presença do Pantanal é só um dos detalhes na produção do escritor nascido no Beco da Marinha, beira do Rio Cuiabá, em 1916. Seu trunfo é ser um artífice do verbo em sua origem espúria, como revelam os versos: “Nenhuma voz adquire pureza se não comer na espurcícia. Quem come, pois, do podre, se alimpa. Isso diz o Livro.”

A poesia de Barros é a de quem está descobrindo o mundo à maneira ingênua de  uma criança ou de um louco. “Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina. / No osso da fala dos loucos tem lírios.”, escreve. Manoel assemelha-se a um menino que, tão logo é solto em meio a escombros, retira deles brinquedos e exibe-os com a bonita ingenuidade de quem enxerga utilidade em algo aparentemente imprestável.

Dessa poesia infante surgem imagens da essência de coisas comezinhas e mesmo abstratas. O poeta “fotografa” o silêncio, o “azul-perdão no olho do cego”, o “perfume de jasmim no beiral de um sobrado”, e personagens como o bêbado que caminha solitário em uma rua silenciosa, o monge “descabelado” por uma palavra renascida da ruína, os artistas que vagam pelo mundo criando obras a partir de restos e pregando a inutilidade das coisas. São esses os “sujeitos distraídos” de que fala o poeta mexicano Octavio Paz: criaturas deslocadas do centro da cena social, ligadas à poesia porque dão sentido a ela ao buscar o que poucos enxergam.

É nessa maneira peculiar de fazer – e revelar – poesia que, acredito, está o maior mérito de Manoel de Barros, mestre em transformar o pequeno em magnânimo.  São escritores como ele que mostram como, em se tratando de poesia, a inutilidade pode ser uma virtude.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Sobre cordas, bambas e o novo

Publicado no Novo Jornal, edição do dia 17 de novembro de 2010

“Não há um porquê”, responde Phillipe Petit, estrela de O Equilibrista (direção de James Marsh e Oscar 2009 de melhor documentário), quando alguém pergunta o que o leva a atravessar grandes distâncias sobre uma corda bamba.

O francês Phillipe Petit ganhava a vida nas ruas, fazendo truques de ilusionismo e de equilibrismo. Ficou famoso em 1971, quando, aos 22 anos de idade, caminhou sobre um cabo esticado entre as duas torres da catedral de Notre Dame, em Paris. Três anos depois, no dia 7 de agosto, burlou a segurança do extinto World Trade Center, em Nova York, para atravessar oito vezes seguidas o espaço entre as torres gêmeas. A performance durou quase uma hora e foi assistida por cerca de cem mil pessoas. O artista foi preso após o ato ilegal, e condenado a uma pena simbólica: fazer um espetáculo infantil, gratuito, em um jardim.

Andar sobre o vão entre as inacabadas torres gêmeas exigiu planejamento, treino do corpo e da mente e equilíbrio entre ambos. Depois, deslizar sobre o cabo. E mais. Phillipe fez graça para o público, sentou sobre a corda, pulou, conversou com as aves. Phillipe era um bamba da corda. Mas ainda um mortal – maluco – sobre um cabo de aço a mais de 400 metros de altura, sem segurança ou rede de proteção. A velha arte do equilibrismo, num trajeto nunca antes percorrido.

Repiso o clichê de propósito. Por quê? Não existe um porquê. Existe vontade.

Mas andar em novas trilhas exige, além da vontade, conhecer o terreno – ou a corda – onde se pisa. Planejar, calcular e seguir. Equilibristas experientes não temem o avanço em meio à lâmina do vento. Dão um passo para trás, oscilam para os lados, mas jamais param no meio da corda. O medo de cair impede o progresso.

No entanto, há que se ter cautela; correr expõe ao risco de tropeçar nos próprios pés, e o público sob a corda pode não amortecer a queda. Sempre há quem se divirta nessas ocasiões. Por isso, é importante manter o foco: levantar a cabeça e olhar para a frente evita a vertigem.

Mas os outros são os outros. Eles apenas podem assistir ao êxito ou à derrocada alheia. Arriscar-se na corda bamba é, primordialmente, desafiar-se, colocar-se à prova. E, mais do que arriscar, descobrir o ponto em que a força motriz transforma-se não em explosão desastrosa, mas na leveza de um Phillipe Petit, caminhando suspenso sobre o vão entre duas torres, cheio de uma vontade que só os malucos, em sua peculiar lucidez, possuem.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Transformando mundos

Eu já quis mudar o mundo. E não estou falando da época em que pulava da cômoda do meu quarto com um lençol preso às costas, brincando de ser a versão feminina do Superman. Eu já havia crescido um pouco, mas ainda conservava um quê da criança que enxergava heróis nos bons professores.

O fato é que, em vez de me imbuir da tal aura heróica, iniciei meu estágio supervisionado, oito meses atrás**, morrendo de medo. Ao longo da graduação em Letras, ouvi muitas histórias sobre alunos problemáticos e professores desestimulados. Antes de assumir um dos terceiros anos do Atheneu, observei outras turmas e decidi oferecer aos meus alunos algo menos engessado. Uns mal reagiram; outros me surpreenderam.

O primeiro episódio que me vem à mente envolve dois alunos com médias ruins e muitas faltas. Certa noite, a turma foi liberada para participar de uma atividade extraclasse, mas ficaram uma moça e um rapaz. Ele me deu uma folha com a atividade que deveria ser entregue na semana seguinte – tinha recuperado com os amigos o material das aulas perdidas. “A senhora dá uma olhada? Eu escrevo mal, tenho até vergonha, queria uma orientação”. “Olha a minha também?”, a menina murmurou.

O foco da conversa logo passou das dúvidas à rotina dos alunos. O rapaz trabalhava pesado e cuidava dos dois filhos pequenos e da esposa. A moça, mãe solteira, faltava às aulas por causa do emprego. Saímos do Atheneu tarde, depois de dicas de leitura e confidências que envolviam planos de ingressar na universidade ou no serviço público.

Quando recebi as versões finais dos trabalhos, percebi que, embora longe do ideal, eram prova irrefutável do esforço dos dois alunos, os mesmos que depois se uniram aos colegas para perguntar por que eu tinha que deixar a escola. O período de estágio acabara e eu precisava voltar à universidade.

Não me gabo de ter conquistado aqueles alunos e de ter contribuído com sua formação: fiz o que se deve esperar de um professor. O problema é que, no meio de todos os absurdos encontrados no ensino público, o que deveria ser regra se torna exceção.

Foi de um professor chamado Henrique – escolado nas mazelas da rede estadual – que, entre discussões sobre letramento literário e dicas de como tornar as aulas mais dinâmicas, meus colegas e eu ouvimos: “não carreguem o mundo nas costas. Se, no meio de trinta, vocês mudarem a vida de dois ou três, a missão foi cumprida”. Não dá para ser herói. Mas proporcionar um vislumbre de mudança não é impossível. E é o mínimo que devemos fazer.


**Artigo publicado no Novo Jornal, edição do dia 16 de julho de 2010

quarta-feira, 9 de março de 2011

Despertar

“Vai trabalhar muito e nada de reconhecimento”, eu ouvia quando, menina, dizia que seria professora. O fato é que só travei contato com a licenciatura após me formar em Jornalismo. Já no penúltimo semestre de Letras, encarei a obrigação do estágio e assumi uma turma do 3º ano do Ensino Médio do Atheneu.

O nervosismo logo deu lugar à empolgação. Mas bastava passar na sala dos professores para murchar diante da falta de motivação dos meus calejados colegas. Certa noite, querendo me entrosar, perguntei se havia algum projeto político-pegagógico. “Minha filha, isso não existe!”, alguém exclamou antes de puxar o coro de risadas. Mas um professor permaneceu em silêncio. Dias depois, ao indagar minha tutora de estágio sobre atividades extraclasse, descobri, por acaso, que aquele homem discreto, moreno e de estatura mediana lecionava Geografia e coordenava um tal projeto Despertar no Atheneu. Fui puxar conversa com o professor, pensando em incrementar meu relatório.

Adalberto Pereira me recebeu no auditório da escola. Com voz suave e segura, contou que o Despertar surgiu no Ceará em 2002 e chegou aqui graças a uma parceria entre o Sebrae e o Governo Estadual. O objetivo é atrair alunos com tino para o empreendedorismo e torná-los aptos a ingressar no mercado, tocando o próprio negócio ou colaborando com empresas. Os jovens são assistidos por voluntários e por profissionais do Sebrae, visitam empreendimentos e conversam com gerentes. Os diplomas são conferidos após 180 horas-aula.

Adalberto afirmou não receber um centavo pelo trabalho no Despertar (seu benefício era uma redução de quatro horas na carga semanal) e ainda ouvir dos colegas que “não vale a pena esse desperdício de tempo”. Ele relatou isso sem se abalar e sorriu ao citar três ex-alunos que vivem do lucro obtido com seus negócios. Aí ficou clara a sua motivação. Certa noite, observando-o de longe, o vi ser respeitosamente abordado pelos mesmos alunos que criticavam outros professores. Lembrei da exortação de Paulo Freire: amem seus discípulos. O próprio Adalberto dissera no auditório: “abrace isso com amor. Hoje, mais do que professor, sou educador. É isso que se deve almejar”.

O tempo de sonhar acabou e a vida é mais difícil do que eu vislumbrava quando criança. Mas, se satisfação não paga as contas, a alegria de operar uma mudança na vida de um aluno não tem preço. Faço votos de que Adalberto continue despertando o melhor de seus aprendizes, e inspirando novos profissionais a fazerem o mesmo.



Publicado no Novo Jornal, edição do dia 14 de maio de 2010.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Sobre poesia e suor

Eu tinha onze anos de idade quando escrevi meus primeiros poemas. Talvez porque admirasse demais a disciplina parnasiana, fazia tudo rimado. Quando conseguia construir um soneto, então, era a glória. Adolescente, evocava amores não correspondidos e outras situações que, eu demoraria um pouco a descobrir, nada tinham de trágicas.

À época, eu ainda não me interessava por poetas marginais, versos livres, rupturas com a tradição. Lia algo de Manuel Bandeira e de Oswald e Mário de Andrade nos livros didáticos e achava aquilo tudo muito engraçado. Ecos da infância. Filha e neta de professoras, cresci numa casa cheia de livros. Muitos eram volumes antigos, recheados de poeminhas rimados e histórias finalizadas com lições de moral.

Eu tinha sete ou oito anos de idade quando descobri, no alto da estante da sala, uma coleção em quatro volumes com capas douradas, coisa fina. Eram as obras completas dos poetas românticos brasileiros. Devorei aquilo e desejei saber rimar. Mas só passei da vontade à ação anos depois, quando travei contato com a métrica fria e meticulosa dos parnasianos. Era o passo que faltava para eu cometer minhas primeiras rimas pobres. Quando finalmente conheci os modernos, do fundo da minha ignorância, já havia me dado conta de uma coisa: como poesia dá trabalho!

Digam o que quiserem, rejeito a tese da inspiração. Não nego que, volta e meia, vêm à mente uns versos que parecem soprados por uma entidade. Mas organizá-los são outros quinhentos, mesmo em se tratando daqueles poemas que parecem compostos às pressas. A bem da verdade, esses são os mais complicados. Afinal, não se pode subverter algo que não se conhece a fundo. Para brincar com a gramática de uma língua, é necessário apropriar-se de todas as suas nuances.  Não à toa o grande poeta Manoel de Barros diz, em um poema que faz parte, se não me falha a memória, do livro Ensaios fotográficos: “A única língua que estudei com força foi a portuguesa. Estudei-a com força para poder errá-la ao dente”. Logo ele, que não rima dois versos num poema.

De vez em quando, metida com minhas tentativas – muitas vezes frustradas – de escrever poemas, lembro dos meus primeiros sonetos e rimas. Não tenho ideia do fim que levaram e espero que não sejam descobertos. Sei, é um pouco triste pensar assim nos meus versos da adolescência. Talvez até fossem dignos, consideradas as circunstâncias. É quando penso nessas primeiras composições, julgadas trabalhosas, que me dou conta: eu era feliz e não sabia.


Publicado no Novo Jornal, edição do dia 12 de março de 2010