Escritos de Ada

segunda-feira, 5 de abril de 2021

A chave de Hannah (e minha também)

"Receber o diagnóstico foi receber a chave da cidade que eu sou", diz Hannah Gadsby, sobre descobrir-se autista, no stand-up "Douglas", escrito e performado por ela e lançado na Netflix em maio de 2020, quinto mês da pandemia de covid-19, que resultou num isolamento que bagunçou o pouco que ainda me restava de organização rotineira e mental (não que estejam separadas, mas enfim...).

[Sim, é isso mesmo, vou tomar a liberdade de voltar o olhar para mim, a partir do olhar de outra autista, em meio a uma tragédia de proporções catastróficas. Licença, pois, para publicar o que escrevi um ano atrás e não tive coragem de compartilhar por medo de ser julgada. Aliás, foi interessante o rascunho deste post ter me aparecido uma semana após eu ser contemplada com a primeira dose da Coronavac junto a outros autistas e a portadores da Síndrome de Down... Enfim, os acasos.]

Pois bem, voltemos a Hannah. Ela enunciou a metáfora mais bela e potente que eu já ouvi sobre a sensação pós-diagnóstico. Sem saber, Gadsby me deu a chave para algo muito difícil de acessar: confiança. Mais do que isso, autoconfiança.

Se cada pessoa autista tem uma distinta combinação de fatores, cada uma tem um modo peculiar de pensar e de expressar seu pensamento, e essas duas coisas podem ser particularmente belas. Então, posso ser boa na minha forma de fazer as coisas. Provavelmente, tenho minha maneira de descobrir interesses, de selecionar recortes, de buscar informações, de estudar temas e de chegar a conclusões sobre eles e expressá-las. Para isso ser bom, não precisa ser como meus modelos são. Pode ser bom e bonito do meu jeito. 

Hannah me ajudou a entender que uma das minhas amarras é tentar me incluir nos grupos - tentar ser aceita com base do que os outros aceitam - e não respeitar a minha maneira de ser, que, presumo, não machuca os demais, enquanto me forçar em contêineres alheios me deixa em pedacinhos. Talvez meu desconforto de hoje seja o que sempre existiu, o de querer me sentir "encaixada" nas estruturas e, para isso, tentar mais ser como os outros do que ser eu mesma e falar do que gosto, da forma como sei fazer. 

É fato que o autismo não é a única coisa a me definir, mas, indiscutivelmente, é grande parcela do que me constitui. Compreender (e aceitar) isso não é me limitar ao rótulo, e sim me expandir explorando todas as possibilidades que me são dadas por ser quem sou.

Se eu encontrasse Hannah agora, diria que "Douglas" me fez repensar o que sou e o que posso ser, e como meu tempo, meus interesses, minha jornada não precisam ser os dos outros. E diria que talvez eu até já tivesse a chave, mas a não a visse, embora estivesse bem nas minhas mãos... Agora, eu a toco sei o que ela abre, e o que vejo é tanto que não posso definir sequer como cidade ou como outra coisa qualquer... Mas sei que compreendo e acolho, e isso, quanto a mim, me basta.

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