Escritos de Ada

terça-feira, 18 de maio de 2021

segunda-feira, 26 de abril de 2021

Desvanecer

Os olhos dele me encaram
a mão se estende para abençoar e para dar tchau
ou vai à boca para mandar beijinho
o riso desdentado se revela diante da TV:
isso acontece nos melhores dias.

Nesses dias também há coisas que não são das melhores:
os passos trôpegos
a vergonha de não controlar os esfíncteres
os gritos chorosos ao chamar pela mãe enquanto olha a sobrinha.

E há os dias piores:
não há mão estendida
não há riso
há apenas o olhar vago de quem parece estar em outro mundo.

Nesses dias, meu consolo é imaginar que talvez
ele, o outro mundo, exista na cabeça desse bebê
de 93 anos de idade
um mundo onde ele não tem demência
onde ele corre com a mãe
ri do Professor Raimundo
não suja fraldas
consegue chupar doces cajus 
e pode dizer
ao filho falecido
à filha ainda viva
às netas ansiosas
às cuidadoras cansadas
e à esposa resignada:
"amo vocês". 

quinta-feira, 22 de abril de 2021

Meu primeiro livro

Você é uma cidade estranha
que eu quero varrer do mapa
(talvez depois de tirar uma foto 
ou de catar alguns dos seus tijolos
talvez algum gesso ou algo mais moldável
quem sabe
as esculturas e os quadrinhos menos feiosos).

você me deixa intranquila
porque me faz pensar
quanto tempo levará
até que eu queira também destruir as outras cidades
derrubar esta parede e as demais

ou mesmo jamais 
me aventurar a erguer outro muro qualquer.

segunda-feira, 19 de abril de 2021

Reflexão diante do espelho

É tão óbvio o desenho do tempo.

Começou como eu suspeitava que seria:
aquelas tênues linhas de quando o riso chega aos olhos
e que ouvi serem a evidência de que se ri genuinamente
mas a questão é que o riso se vai e elas ficam
estão lá
pequeninas: 
o primeiro aviso.

Depois 
aqueles pares
que eu não sei qual veio primeiro:
se o bigodinho chinês
se as marcas entre as sobrancelhas
nasceram juntos?
Não sei.

O que sei:
juntos se revelam 
como que dizendo que é apenas um ensaio
que sua expansão é inevitável
como aquela a quem precedem

aquela que desejo estar ainda
a linhas e linhas de distância
do que ainda posso fazer emergir da vida. 




quinta-feira, 15 de abril de 2021

Os poemas

Lê-los é qualquer coisa
entre o afago e a ardência
- inclusive pode ser coisa nenhuma.

Escrevê-los dói
mas é certo:
cura. 

segunda-feira, 12 de abril de 2021

Etéreo

Enfim o sonho não dói
embora eu ainda não olhe teus olhos
- mas lembro-me da cor e do formato deles, vejo-os então.

Toco tua mão
e apuro o ouvido
é hora do Angelus e eu digo:
"tão bonita essa Ave Maria
ainda mais assim, no acordeon".

Você ri e eu sei disso pela perturbação do ar
porque ainda não te olho
e talvez por isso
pela vibração do vento
eu acordo.

Acordo em meio às migalhas de sono
e do sonho
e toco sua moldura etérea
como se fosse ainda tua mão

e vejo teus olhos
- ainda daquele jeito - 
sinto teu riso
não durmo mais

mas sonho ainda
e não dói. 

terça-feira, 6 de abril de 2021

Meio jacarezinha (ou mais um post do Insta que vem morar aqui)

Acabo de concluir que minha foto mais fora do padrão Instagram é a mais curtida do meu perfil nessa rede. Isso é um bom sinal, pois o registro em questão é da minha pessoa descabelada e chorando, após tomar a primeira dose da Coronavac  junto a outros autistas e também a portadores da Síndrome de Down. Recebi tantas felicitações que parecia ser meu aniversário. Pessoas choraram, me mandaram mensagem, trocentas piadas sobre virar jacaré foram feitas, o que resultou em fotos e humor de qualidade até razoável com as fotos de Cícero Tibúrcio, meu banco de madeira em formato de calango. Pois é, um bocado de gente se importa com a felicidade alheia e compartilha dela. Que bom. Que necessário.

Pois é, na semana passada eu peguei meus laudos e meu cartão de vacinacão, fui à sede da OAB/RN, esperei um tantinho, me agitei tanto que ninguém diria o infame "mas ela nem parece autista" e, após a vacina, chorei pensando em tanta coisa... Nas pessoas neurodiversas que têm seu direito ao diagnóstico negado, no trabalho incansável dos cientistas, em toda a população que ainda aguarda a vacina e segue confinada, com medo, arriscando a vida em seus trabalhos por falta de um auxílio decente e passando fome... Como não chorar? 

Eu só queria que todos pudessem sentir, o mais rapidamente possível, essa mesma pequena fagulha de alívio e esperança que senti na terça-feira passada. Pessoas, valorizem o SUS. Valorizem a ciência. Se precisam de profissionais da rede privada para acompanhá-las, sejam gratas a elas/eles (Hélder, Walter, obrigada por tornarem minha vida melhor e me ajudarem a me perdoar, me aceitar, me cuidar), mas não se esqueçam dos tantos e tão incansáveis servidores públicos, entre eles os da saúde, que estão carregando este piano tão pesado. 

E, por favor, não nos acomodemos. Sabemos quem são nossos inimigos e não podemos entregar tudo a eles, achando que são mais fortes do que nós.

Por fim, sempre e com força: viva o SUS, viva o serviço público, viva a ciência!!!

segunda-feira, 5 de abril de 2021

A chave de Hannah (e minha também)

"Receber o diagnóstico foi receber a chave da cidade que eu sou", diz Hannah Gadsby, sobre descobrir-se autista, no stand-up "Douglas", escrito e performado por ela e lançado na Netflix em maio de 2020, quinto mês da pandemia de covid-19, que resultou num isolamento que bagunçou o pouco que ainda me restava de organização rotineira e mental (não que estejam separadas, mas enfim...).

[Sim, é isso mesmo, vou tomar a liberdade de voltar o olhar para mim, a partir do olhar de outra autista, em meio a uma tragédia de proporções catastróficas. Licença, pois, para publicar o que escrevi um ano atrás e não tive coragem de compartilhar por medo de ser julgada. Aliás, foi interessante o rascunho deste post ter me aparecido uma semana após eu ser contemplada com a primeira dose da Coronavac junto a outros autistas e a portadores da Síndrome de Down... Enfim, os acasos.]

Pois bem, voltemos a Hannah. Ela enunciou a metáfora mais bela e potente que eu já ouvi sobre a sensação pós-diagnóstico. Sem saber, Gadsby me deu a chave para algo muito difícil de acessar: confiança. Mais do que isso, autoconfiança.

Se cada pessoa autista tem uma distinta combinação de fatores, cada uma tem um modo peculiar de pensar e de expressar seu pensamento, e essas duas coisas podem ser particularmente belas. Então, posso ser boa na minha forma de fazer as coisas. Provavelmente, tenho minha maneira de descobrir interesses, de selecionar recortes, de buscar informações, de estudar temas e de chegar a conclusões sobre eles e expressá-las. Para isso ser bom, não precisa ser como meus modelos são. Pode ser bom e bonito do meu jeito. 

Hannah me ajudou a entender que uma das minhas amarras é tentar me incluir nos grupos - tentar ser aceita com base do que os outros aceitam - e não respeitar a minha maneira de ser, que, presumo, não machuca os demais, enquanto me forçar em contêineres alheios me deixa em pedacinhos. Talvez meu desconforto de hoje seja o que sempre existiu, o de querer me sentir "encaixada" nas estruturas e, para isso, tentar mais ser como os outros do que ser eu mesma e falar do que gosto, da forma como sei fazer. 

É fato que o autismo não é a única coisa a me definir, mas, indiscutivelmente, é grande parcela do que me constitui. Compreender (e aceitar) isso não é me limitar ao rótulo, e sim me expandir explorando todas as possibilidades que me são dadas por ser quem sou.

Se eu encontrasse Hannah agora, diria que "Douglas" me fez repensar o que sou e o que posso ser, e como meu tempo, meus interesses, minha jornada não precisam ser os dos outros. E diria que talvez eu até já tivesse a chave, mas a não a visse, embora estivesse bem nas minhas mãos... Agora, eu a toco sei o que ela abre, e o que vejo é tanto que não posso definir sequer como cidade ou como outra coisa qualquer... Mas sei que compreendo e acolho, e isso, quanto a mim, me basta.