Escritos de Ada

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Ceição

Ela nunca me abraçou. Reservada, guardava os carinhos para a filha. Mas afagou-me desde meus primeiros meses de vida com peças cuja delicadeza era a antítese do barulho produzido pela máquina de costura Singer.

Maria de Conceição vestia-se modestamente. Em casa, estava sempre de havaianas, camisetas velhas e bermudas. Prendia os cabelos crespos num rabo-de-cavalo ou mantinha-os enrolados e presos por grampos, formando uma touca ao redor da cabeça. Mulher séria, discreta, religiosa, pedia a bênção a vovô – seu tio – e a vovó – madrinha – com a voz suave, estendendo suavemente a alva e calejada mão direita.

Se, na cozinha, as mãos de Ceição davam conta de pouco além do básico, com linha, agulha e tecido elas faziam maravilhas. Mais as rendas, fitas e bicos da loja da minha tia, dava-se a mágica. Mal vestia as roupas, ainda em casa, eu já me sentia a Rainha do Milho da quadrilha, o destaque do carnaval, a diva da festa de aniversário. As colegas olhavam – de esguelha ou sorrindo, dependendo do grau de amizade – e às vezes tocavam as peças, para depois perguntarem onde vovó havia comprado meu macacão, meu vestido, meu conjunto. “Ela só compra o tecido”, eu respondia, para arrematar depois: “é minha prima Ceição que faz”, cheia de orgulho da parente  que reproduzia, com riqueza de detalhes, os figurinos das revistas e das novelas.

Então chegou a época – muito temida por vovó – em que comecei a verbalizar, discretamente, minha insatisfação com os babados, bordados e cambraias. Meu desejo eram os jeans e outras peças, semelhantes às das demais adolescentes, que eu via nas vitrines das lojas. Ceição passou a costurar cada vez menos. “Minha vista é ruim”, dizia, ajeitando os óculos de lentes muito grossas que deixavam os olhos miudinhos. Eu soube por vovó do diagnóstico: glaucoma. E a casa de Ceição foi ficando cada vez mais silenciosa e vazia, sem os montes de tecidos que antes se acumulavam sobre a mesa de costura.

Hoje, as mãos que já me transformaram em princesa, anjo, bruxa e caipira ocupam-se mais de panelas, panos de prato e vassouras. Nem dos cabelos e roupas da filha, já quase adulta, cuidam mais. Há quem diga que as últimas tentativas com a máquina Singer, quase o tempo inteiro relegada a um canto de parede e coberta por um pano que a protege da poeira, não foram bem sucedidas. Bem, digam o que quiserem: para mim, as mãos de Ceição sempre serão de fada.


Publicado no Novo Jornal, edição do dia 06 de junho de 2010


Um comentário:

  1. Tão triste ó__ò
    Minha mãe também está parando de costurar por causa dos olhos... Ela nunca foi costureira, mas sempre andou às voltas com a sua Singer...

    ResponderExcluir