Meu primeiro livro se chama "Menina gauche". É um livro de poemas. Na orelha dele, escrevi um pequeno texto remetendo ao "Poema de Sete Faces", de Drummond, aquele do "Vai, Carlos, ser 'gauche' na vida". "Gauche" é uma palavra francesa que significa "esquerdo", "estranho", "esquisito".
"Esquisita". Esse é um dos adjetivos que mais escutei quando era criança. Pensei, durante muito tempo, que tal recorrência não pudesse ser fruto do nada, do acaso, de mera vontade de ver até que ponto ia minha paciência.Tinha de haver alguma motivação para isso.
Pois bem, foi motivada por isso que escolhi o título "Menina gauche" para meu primeiro livro. De certa forma, eu estava assumindo algo que parecia constatável diante de certas coisas que eu fazia. Eu era a menina que aprendeu a ler sozinha muito cedo, que falava como adulta, que levava brincadeiras a sério e chorava por causa delas, que não precisava estudar para nada que envolvesse leitura e escrita e que, em algum momento, percebeu que isso talvez não fosse tão bom. Se o fato de ser "muito inteligente" fez um professor me desafiar, diante de toda a turma, a tirar nota dez numa chamada oral - escrotamente elaborada a partir de 3487374 estatísticas num quadro de fim de página que criatura nenhuma pensaria em memorizar - e rir enquanto falava que me derrubaria do cavalo, não podia ser bom ser como eu era. Ser "superdotada", falar como uma "professorinha", viver num mundo à parte, rejeitar convites para socializar com amiguinhas na praia alegando cansaço, chorar por tudo, não me comover ou até rir com a notícia da morte de alguém parecia ser ruim. Então, eu precisava me adequar. Eu precisava lutar contra o que parecia ser inadequado em mim, mimetizar relações sociais, aceitar que alguns comportamentos precisavam mudar e treinar para isso.
Ocorre que isso cansa. Vigiar-se e se apertar em caixinhas estreitas gera dor e exaustão ao ponto do surto. E eu me sentia assim, exausta, querendo saber se eu tinha ansiedade, depressão, síndrome do pânico ou algo parecido quando, algumas semanas atrás, após eu ter chorado dizendo que não aguentava mais a sensação de estar sempre, em maior ou menor medida, inadequada, meu psicólogo confirmou que tenho Síndrome de Asperger (ou seja, estou na ponta mais branda do espectro do autismo). Isso ocorreu após mais de dois anos de terapia, aos 33 anos de idade. Dois anos podem parecer muito tempo, mas, na verdade, foram o necessário para que eu soubesse lidar com o diagnóstico. Meu terapeuta desconfiou da minha condição nas primeiras interações comigo, mas precisava se certificar de que minha reação ao laudo seria positiva.
Eu, como criatura que precisa de "todos os pingos no is" e que, nas palavras da minha avó materna, sou "cheia das nove horas", muito dependente de tudo bem categorizado e explicado, fiquei aliviada por poder colocar sob um só rótulo boa parte do que me faz ser quem eu sou. Eu preciso me certificar das coisas e entendê-las e fico aliviada quanto consigo colocá-las em caixas, logo eu, que passei boa parte da minha vida tentando fugir de vários contêineres nos quais tentavam me acomodar enquanto eu tinha a nítida sensação de que não cabia neles.
Agora entendo por que nem sempre é fácil olhar pessoas nos olhos enquanto falo com elas, por que me sinto mal quando me tocam sem permissão, por que preciso achar espacinhos nas multidões para ficar bem em meio a elas, por que certos barulhos são como punhais nos meus ouvidos, por que prefiro me comunicar a distância e por escrito, por que não lido bem com instruções orais, por que meus interesses e algumas habilidades são tão específicos e chegam ao ponto da fixação.
Eu não vou viver em função de ter a Síndrome de Asperger, mas pretendo, sim, focar em ser mais compreensiva comigo, ser mais cuidadosa, desenvolver mais estratégias que não me machuquem. Quero também que os neurotípicos entendam que há pessoas como eu, que precisam de um pouco mais de paciência e cuidado e menos de ouvir coisas como "ah, mas todo mundo é assim, todo mundo tem manias em algum grau, tudo mundo tem tique, tudo mundo isso e aquilo" etc... Vejam, eu não sou todo mundo. Eu, assim como qualquer pessoa que esteja dentro do espectro do autismo, sofro - sim, o verbo é esse mesmo, "sofrer" - com coisas que parecem triviais.
Por exemplo, eu não me irrito, simplesmente, com barulho. A coisa é muito pior. Eu tenho taquicardia quando a vizinha de cima anda de salto alto, eu pulo para cima da cama quando uma moto de 28372873287 cilindradas passa arrancando o asfalto da rua, eu já briguei com meus alunos porque achava que eles estavam conversando quando, na verdade, o barulho estava todo do lado de fora do ausitório. É tudo - percepção, sensações e respostas a elas - exagerado, seja para mais ou para menos. O processamento de estímulos é diferente e assim também tendem a ser minhas reações.
Então, por favor, você que me lê, saiba que o discurso do "somos todos iguais" não pode ser aplicado de modo leviano. Há uma diversidade de comportamentos e de conjuntos de características de modo que podemos dizer que, sim, somos sete bilhões de diferentes. Defendamos equidade nas mais diversas relações e níveis, não uma suposta uniformidade que é excludente, que faz alguém no espectro do autismo - que é um continuum imenso, passando por muitos tons de cinza desde a Síndrome de Asperger até o autismo mais severo - ouvir coisas como "ah, não, você tá aí falando que se incomoda com barulho, mas quem gosta de barulho? Ninguém."
O que estou querendo dizer é: abram seus olhos e seus ouvidos, escutem mais, observem mais, julguem menos, informem-se. Eu estou procurando me informar sobre minha condição e me observando melhor, procurando padrões que me auxiliem no entendimento de quem eu sou e na construção de estratégias para viver melhor. Relativizar minhas características de "aspie" - por mais que a intenção seja boa -, ao contrário de me ajudar, me silencia e me frustra. Isto inclui me comparar com outras pessoas que também estão no espectro do autismo. Trata-se, como já ressaltei, de um espectro muito amplo, de modo que é difícil pensar em um "aspie" com o mesmo conjunto de características de outro. Há aqueles que não suportam toque algum, nem do pai ou da mãe, por mais gentis e amorosos que estes sejam. Já eu consigo permitir isso a pessoas que não me façam sentir acuada, que me transmitam segurança e por quem eu nutra grande afeto. Sabendo disso, eu tento mudar o que posso (por exemplo, treinar kung fu para minimizar minhas limitações motoras e minha resposta a instruções orais) enquanto, por outro lado, não pretendo mais me submeter ao que continua e, provavelmente, continuará me causando sofrimento; isso inclui quebras bruscas demais de rotinas que não precisariam ser alteradas e permissão para que pessoas que não são do meu círculo me abracem se eu não me sentir confortável com isso.
Outra coisa que eu não posso esquecer é que a descoberta de que tenho um transtorno do espectro do autismo tem de me fazer não só ser mais cuidadosa comigo como também mais complacente com pessoas que, sem querer, me causaram algum sofrimento, pois elas certamente não tinham ideia da minha condição e, mesmo que tivessem, não saberiam como agir sem prévia instrução. Tem de servir, também, para eu lembrar que outras tantas pessoas têm particularidades que tornam suas vidas mais difíceis e, por isso, preciso me esforçar mais para ser gentil com elas.
Enfim, receber o diagnóstico foi excelente, trouxe alívio, mas não dá para dizer que fico totalmente numa boa com isso. Como já falei, algumas dificuldades vão me acompanhar pelo resto da vida. Surtos poderão continuar ocorrendo. Mas, sabendo-se que não há o que fazer e que só tenho esta vida a viver, preciso fazer o melhor que puder e isso inclui entender que não tenho a obrigação de ser forte o tempo inteiro. Preciso ser gentil com meus joelhos. Meu terapeuta sempre diz isso e fala que, não importa o que ocorra, eu devo continuar a nadar, mas lembrando de respeitar meu ritmo.
O melhor de tudo é que, se o fato de eu me perceber diferente me fazia mal, talvez mais pela dúvida sobre essa diferença, agora estou melhor porque sei que não sou errada nem doente. Apenas tenho um conjunto de características que me aproximam de uma parcela da população e me distanciam de outras. Se estas não estão preparadas para quem tem Síndrome de Asperger, não posso encarar isso com pesar nem como sendo um problema meu. O problema não sou eu.
De agora em diante, assumindo que sou uma "gauche", pretendo viver de modo a nunca mais me forçar a entrar em caixas que não foram feitas para mim e a carregar apenas o peso que posso levar. Uma armadura mais leve haverá de tornar meu percurso mais fácil, apesar dos passos um tanto tortos.
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