Escritos de Ada

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Sinatra sem voz

Todo jornalista, com ou sem formação acadêmica, já mexeu com o tal lead. Essa palavra inglesa define o primeiro parágrafo da reportagem, que, reza a cartilha, deve responder as perguntas: O quê? Onde? Quando? Por quê? Como?

Um adepto fervoroso do lead dificilmente iniciaria um texto com: “Frank Sinatra, segurando um copo de bourbon numa mão e um cigarro na outra, estava em um canto escuro do balcão entre duas loiras atraentes, mas já um tanto passadas, que esperavam ouvir alguma palavra dele”. Pois é assim que começa um dos perfis mais aclamados da história do jornalismo.

“Frank Sinatra está resfriado” foi publicado pelo americano Gay Talese em 1965, na revista Esquire, e incorporado mais tarde ao livro Fame and obscurity. Sua mais recente versão no Brasil foi publicada em 2004, com o título Fama e anonimato, pela Companhia das Letras.

Talese foi repórter diário do The New York Times nos anos 1950. Pediu demissão em 1965: queria mais tempo para apurar suas matérias. Passou a trabalhar em revistas e em seus próprios livros. Tornou-se um dos pais do new journalism, modalidade que funde elementos do jornalismo com outros tipicamente fictícios, como a descrição detalhada das cenas e o ponto de vista do personagem.

Essas características estão no perfil de Sinatra, fruto de cinco semanas de observação e nenhuma entrevista com o próprio. O cantor recusou-se a falar com Talese, que decidiu seguir seu perfilado em Los Angeles e conversar com quem estava à sua volta. O resultado são mais de cinquenta páginas magistrais.
 
Hoje, aos 77 anos, Talese detém um amplo legado, difícil de resumir em poucas linhas. Uma de suas lições é que não se deve ser escravo do lead, sob pena de emburrecer à força da facilidade demasiada. Outra é que é possível escrever um perfil sem entrevistar o perfilado, desde que haja uma acurada observação. Não poder perseguir um assunto durante semanas não é empecilho para deixar de cercar bem os fatos. Pena que a corrida cada vez maior pelo “furo” resulte em textos rasteiros e em jornalistas reféns da internet e de comunicados oficiais.

Talvez, o maior ensinamento seja o de que precisamos colocar gente nos jornais. O jornalismo de Talese tinha uma cara muito humana, fosse empoada como a das celebridades ou suada como a dos trabalhadores braçais. Para isso, é necessário ir às ruas, falar com as pessoas, cercar-se delas. Isso exercita o instinto. E jornalista sem instinto, como diria Talese, é “Picasso sem tinta. Ferrari sem combustível – só que pior”. É como Sinatra sem voz.

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